sábado, 27 de fevereiro de 2016

Elite Cultural


Quando ingressei na faculdade de jornalismo em 2003, na Newton Paiva (só no ano seguinte iria para a PUC), ainda não existiam programas como Pró Uni ou mesmo o sistema de cotas sociais e raciais. Naquela época, ir para um centro universitário, uma universidade, ainda era um processo pra poucos. A federal, sempre muito concorrida, desencorajava gente que, como eu, só há pouco havia se convencido que poderia mesmo fazer uma graduação. Sim, pobres e negros (e negro frequentemente é pobre) precisam se convencer de que pertencem àquele espaço. Ainda mais naquele período, anterior à toda essa moçada empoderada que andou tomando de assalto as espaços acadêmicos públicos via ações afirmativas, e com resultados exitosos. Não tínhamos essa referência ainda. Entrar para as particulares também não consistia tarefa fácil. Ainda eram poucas as instituições privadas existentes e, mesmo com uma concorrência menor em relação à UFMG, as vagas eram bem disputadas, por muita gente vinda de boas escolas particulares. Enfim, de qualquer forma era a famosa “competição justa” da qual sempre ouvimos falar. Passei em 15º. Nada mal, considerando o meu baixo nível de auto-confiança e auto-estima para encarar a empreitada. Ao passar, feliz com o resultado e comemorando o fato de ser o primeiro homem da família a ingressar numa instituição de ensino superior, sendo eu a quarta geração de indivíduos nascidos “livres” em território brasileiro... Sim, só isso. 
Parece que foi num passado longínquo, mas 117 anos não é tanto tempo assim, é literalmente “ontem”. Se o processo de auto-convencimento de que deveria ocupar aquele espaço foi penoso, difícil, de uma forma que só quem vem da mesma realidade pode entender, conseguir passar foi uma grande recompensa, mas ainda havia a questão financeira. Lembrei-me de um samba do Martinho da Vila, onde ele narra a história do sujeito pobre que passava num vestibular, mas numa faculdade particular. Meu caso. O próximo desafio do aluno de baixa renda era justamente arcar com os custos. Minha mensalidade custava em torno de R$ 521,00 e eu tinha um salário de R$ 300,00, como “pau pra toda obra” em um laboratório de análises clínicas. Eram dois meses de trampo para uma mensalidade, mas encarei assim mesmo, e não fui o único. Uma vez lá dentro soube de outros colegas com poucas condições financeiras que também se arriscaram, esperando que algo mudasse pra melhor no meio do caminho. Invariavelmente, esses alunos abandonavam os cursos. Boa parte desses pouquíssimos que tentavam, jamais retornariam para qualquer outro espaço acadêmico. No fim, sentíamos na prática a desconstrução da falácia do mito do “homem que se faz por si mesmo”, como se o ambiente em volta e as condições sociais e históricas não contassem.

Na primeira semana de aula, o reitor, e também um dos donos da faculdade, recebia os alunos recém chegados com muita pompa, num grande auditório. Não me lembro de quase nada do discurso, a não ser a parte em que ele dizia: “De agora em diante vocês são a elite cultural deste país”. Aquilo ficou martelando, talvez por vaidade e deslumbramento de alguém que achou que jamais pisaria ali, mas hoje vêm novas reflexões. Primeiro sobre a possibilidade de alguém, ou um grupo, ser alguma “elite cultural”, porque isso pressupõe a possibilidade de hierarquizar cultura, mas a leitura mais acertada que fica mesmo é a dos meios nas mãos de poucos. Pode não ser isso o que ele tinha em mente enquanto falava, mas, na prática é só um jeito de atestar o conhecimento, e o possível domínio de produção cultural e econômico em detrimento dos demais, sem os mesmos acessos e combalidos financeiramente, principalmente em relação à maioria dos que podiam ocupar aquelas cadeiras. 
E, pensando mais um pouco, reflito o quanto é antipedagógico e destrutivo esse conceito de “elite cultural”, num país de dimensões gigantescas, com tantas manifestações e profundas desigualdades. , naqueles dias maiores do que hoje, acredite. 
Há também a visão de que justo ou não, aquilo, estar ali, consistia num privilégio, não deveria ser, mas era e ainda é.Talvez isso só sirva para reforçar uma ideia de separação entre “os que sabem” e “os que não sabem”. 
A despeito do "privilégio" em relação à grande maioria dos meus pares, não sou, nunca fui, e nem pretende ser elite de coisa alguma. Meu status ainda é de guerrilha, tentando ocupar espaços. Anos depois de oficialmente graduado, embora em outra instituição e como bolsista, sigo aprendendo.